Contra os T.P.C marchar, marchar!
Imagine que chega ao trabalho e, sem qualquer sentimento de culpa por estar a roubar tempo que lhe é pago para trabalhar pela sua entidade patronal, gasta umas boas duas horas a tratar de assuntos domésticos: paga contas online, atende telefonemas da educadora dos miúdos, dos senhores da NOS, aproveita e adianta as compras via Continente Online, lê um capítulo do livro que não tem conseguido acabar porque chega à cama tão cansado. Para cúmulo, o seu chefe tenta interrompê-lo n vezes, chama a sua atenção e você responde "ah, espere só um bocadinho! O colaborador tem só que acabar isto e já vai!" Surreal, certo?
Imagine que chega a casa e gasta umas boas duas horas a ultimar aquele relatório, a acabar o Excel que ficou de enviar para o seu chefe, a ultimar os documentos que não conseguiu terminar no horário de expediente e que têm mesmo que ficar prontos. De caminho, atende o telefone do seu chefe, manda e-mails a clientes e faz mais duas ou três chamadas. O seu filho tenta interrompê-lo x vezes, chama a sua atenção e você responde "oh querido, espera só um bocadinho que a mãe/pai está só a acabar umas coisas de trabalho e já vai ter contigo". Surreal ou uma realidade?
Agora vamos fazer este exercício tendo como sujeito a sua criança.
Imagine que o seu filho chega à escola e saca do tablet para descontrair um bocadinho e jogar um joguinho. Põe os phones nos ouvidos e ouve uma musica para relaxar e tentar gozar um bocadinho de ócio na sala de aula. Saca uns episódios de desenhos animados e cá vai disto. De caminho, como é adolescente, aproveita o tempo da aula para estar no chat com os amigos ou para ver se há pikachu perto do quadro ou debaixo de alguma cadeira. É que nem se atrevia, certo? Nem o pai nem a mãe normalizariam estes comportamentos que são característicos do tempo passado em casa a descontrair, a socializar com os pais ou com o grupo de pares.
Agora imagine que depois de uma carga letiva de oito horas (sim, a mesma carga horária do dia de trabalho de um adulto) a criança chega a casa e tem que fazer uma cópia para Língua Portuguesa, uns problemas para Matemática e uns exercícios de Estudo do meio. Acaba estas tarefas e tem tempo para tomar banho, jantar e ir para a cama. Parece-lhe um cenário estranho? Nem por isso, não é?
Enquanto psicólogo mas, mais ainda, na qualidade de pai, continua a espantar-me a nossa conivência para deixar as tarefas que deveriam estar circunscritas ao espaço trabalho e ao espaço escola entrarem nas nossas casas.
Naquelas formações de gestão de tempo, muito bonitas e teóricas, aprendi que o dia tem 24 horas e deveria estar organizado em três períodos de 8 horas: 8 horas para escola/trabalho, 8 horas para família/amigos/vida social e 8 horas para descanso.
As oito horas dedicadas à escola/trabalho são, na maioria dos casos, cumpridas escrupulosamente. No entanto, normalizamos, com toda a descontracção do Mundo e sem qualquer sentimento de culpa, o roubo de tempo às oito horas que deveriam ser dedicadas à nossa família e aos nossos amigos com trabalho extra pós-laboral (e a maioria de nós não tem uma divisão em casa chamada de "escritório", mesmo trabalhando por conta de outrém, assumindo a inevitabilidade de um espaço próprio para estendermos as tarefas laborais para o âmbito doméstico?) e com T.P.Cs.
Ora, a minha filha ingressa no primeiro ciclo no próximo mês de Setembro e esta vai ser a minha primeira batalha. Eu prometo à professora não importunar o seu tempo lectivo com tarefas domésticas e hábitos cá de casa, para garantir que a Ana possa ter toda a atenção direccionada para os conteúdos que ela ministra.
Em troca, peço-lhe a mesma deferência. Quando a Ana chegar da escola queremos ouvir o dia dela, brincar em conjunto, que ela continue a brincar na sua cozinha IKEA enquanto nós fazemos o jantar ( é sempre um tempo de partilha precioso), que continue a pôr a mesa, que ela possa ver- quiçá- um episódio da K.C, a sua nova heroína. Queremos que ela tome um banho relaxante sem ser a despachar e que lhe possamos continuar a contar, sem pressas nem atropelamentos, uma história antes de dormir.
A mãe trabalha em Lisboa e chega a casa depois das 19h. A Ana deita-se às 21h30. São duas horas e meia por dia que temos para estarmos juntos os três. Duas horas e meia que não queremos que sejam ocupadas por cópias, ditados e exercícios vários. É pedir muito? Não é justo?
Não me levem a mal. Eu gosto de professores, tenho maior respeito, admiração e reverência pelo seu trabalho. Acredito que o espaço-escola é de extrema importância para o desenvolvimento das crianças. Fiz TPCs durante todo o meu percurso curricular e não morri. Mas eu entrava na escola às oito da manhã e saía à uma da tarde. A minha mãe trabalhava ao lado de casa e chegava a casa sempre com o sol no céu, fosse Verão ou Inverno. Quando chegava eu tinha feito os TPCs durante a tarde, sob supervisão da minha avó e tínhamos aquele final do dia para estarmos em família. Era bom. Tranquilo. E equilibrado.
Hoje em dia as crianças passam o dobro do tempo em contexto de sala de aula, tempo suficiente para treinarem todas as novas aprendizagens. Os pais trabalham longe, o trânsito consome-lhes horas de vida e têm pouco tempo disponível para os filhos. Os avós ainda trabalham e são os centros de estudo que ajudam na realização dos T.P.Cs.
E reitero, eu gosto de professores, tenho maior respeito, admiração e reverência pelo seu trabalho. Acredito que o espaço-escola é de extrema importância para o desenvolvimento das crianças. Mas também gosto de famílias e do papel insubstituível que elas garantem ao desenvolvimento das suas crianças. Assim como o papel do espaço casa, do espaço rua, do espaço com pais, irmãos, amigos e outros adultos de referencia. Do espaço do brincar, do lazer e até do ócio
.
Cada um nos seus devidos tempos.