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Em nome do Pai

Paternidade na ótica do utilizador.

Em nome do Pai

Paternidade na ótica do utilizador.

Depois da tempestade, vem a esperança

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A par da minha profissão e do meu trabalho remunerado, tenho feito há mais de 15 anos, voluntariado numa organização não governamental na área da deficiência. 

 

Em 2005 eu e a Liliana, minha mulher ( e também ela psicóloga) começámos a trabalhar na dinamização de um projecto sistémico de apoio a crianças e jovens com Spina Bífida e suas famílias, reunindo uma vez por mês e, enquanto eu dinamizava o grupo das crianças, a Liliana trabalhava de forma embrionária na capacitação daquele que se tornou no primeiro grupo de ajuda e suporte mútuo da Associação. 

 

Naqueles dois anos que durou o projecto verificámos a importância que o trabalho junto destas famílias tinha mas é hoje, cerca de 15 anos passados, e reencontrando as mesmas famílias, que entendemos o verdadeiro impacto de tudo o que semeámos naquela altura e as diferenças abismais com outras famílias que encontramos agora e que não beneficiaram dessa experiência. 

 

Acontece que, recentemente, a Liliana teve um problema de saúde complicado e demorado e, de repente, tornei-me eu no cuidador. 

 

Não me querendo fazer de herói ou mártir, até porque quem ama cuida e não tem muito tempo para racionalizar o processo, o papel do cuidador é, claramente, subvalorizado. 

 

Trabalhando com pais de pessoas com deficiência (na verdade, na maioria com mães, mas isso dá matéria para outro post) sempre percebi que a força motriz é o amor. O amor inato e instintivo, o espírito de protecção face à fragilidade percebida, a projeção no futuro que se acredita sempre que será melhor, mais fácil ou, pelo menos, "resolvido". Estas mães concentram-se nos filhos, dia após dia, sem folgas nem férias, a terem que pensar em tudo, a tentar equacionar todas as barreiras para se prevenirem, para terem planos b, c e d até ao z, se preciso for. Nunca conheci pessoas tão resilientes,combativas e bélicas como estes pais mas... até os gatos bravos gostam de festas. 

 

Quem cuida destes cuidadores? Quem lhes dá colo e lhes diz que tudo vai passar? Quem lhes seca as lágrimas com o peito da mão e os abraça de forma securizante? Quem lhes ouve os medos e as incertezas, as angústias e as inseguranças quando a boca deles diz com toda a certeza "vai correr bem!" mas as não há qualquer garantia de que tudo vai, efetivamente, correr bem? Quem os ajuda a ver "a big frame"? A estruturar e organizar o pensamento?

 

Durante o tempo em que a minha mulher esteve gravemente doente, o foco era, obviamente, ela. Todos estavam preocupados com ela. E eu estava a tentar geri-la a ela (ou melhor, ao impacto da doença nela) e à preocupação de todos e a um sem número de detalhes que todos os que estão à volta e que querem ajudar a pessoa que está doente se esquecem: a gestão do dia-a-dia da filha comum (mas aqui a minha vénia à minha sogra e à tia da minha mulher, sem as quais não teria sido humanamente possível), das idas às inúmeras consultas e tratamentos médicos ( e ela ir sozinha nunca foi opção) e o impacto que esse absentismo tem na vida profissional, da lida da casa, a ausência de vida social e muita mas muita solidão, sentida em bancos de salas de espera de hospital, em decisões na vida da filha que tiveram que ser tomadas sozinho ( e eu sempre projectei a parentalidade enquanto um projecto a dois) e num sem número de situações. 

 

Todos os dias um cansaço extremo. Primeiro o cansaço físico pelas noites em que era impossível dormir assistindo ao calvário de dores que ela sentia ali ao lado, logo a seguir vinham as manhãs em que as rotinas da Ana só eram asseguradas por mim, o trabalho todo o dia, chegar e assegurar as rotinas de fim de dia, as refeições, a roupa e tudo. E tudo.

 

Depois, o cansaço emocional imenso, reflexo do físico, mas em grande parte resultante de um enorme medo do que estava a acontecer, do que pudesse vir a acontecer e da falta que a minha mulher, sempre bem disposta e hiperactiva, me estava a fazer, pois tinha-se transformado numa sombra daquilo que é. 

 

Percebo agora que sentem, todos os anos, as mães de famílias monoparentais quando nos entregam os filhos para uma semana de campo de treino da Associação: uma angústia de separação imensa, alguma confusão e desorientação no espaço (epá, agora sem o meu filho a "tira-colo" quais as opções que tenho ao meu dispor no dia-a-dia?), sentimento de confusão ("nem sei muito bem o que vou fazer sem ele nesta semana... Estou habituada a estar ao serviço dele noite e dia, que nem sei com que me irei entreter...") e depois um alívio misturado com culpa, por se poder uma semana por ano ser a Maria, a Ana ou a Paula, e não a mãe do João, da Filipa e do Francisco. 

 

Ser cuidador é tão exaustivo e exigente que deixa pouco tempo para se ser o que se quer que seja, para além de cuidador. Cumpre-se, não se é. Trabalha-se, faz-se a lida da casa, empurra-se a vida com a barriga mas ser, ser, só se consegue ser cuidador. Este é realmente um papel a tempo inteiro. O único verdadeiro que conheço.

 

Foram meses muito desafiantes. Que resistimos porque temos a sorte de conhecer pessoas que não desistiram de nos ajudar (um beijinho Dra. Daniela Marto!) e porque gostamos muito um do outro (mais do que tudo o resto) e do projecto de família que criámos. De forma inequestionável. Parece que passou. :)

 

Neste momento, estou num período de descarga de adrenalina, depois da tempestade. Meio confuso. Como a mãe de um rapaz com Spina Bífida, já maior de idade, que quando pela primeira vez o deixou connosco no campo de treino não nos soube responder o que iria fazer com todo o tempo daquela semana que lhe iria sobrar. Não sabia mesmo. E não estava a fazer fita, não sabia, já não se lembrava das opções que tinha ao seu dispôr sem ser na companhia do filho cadeirante e muito dependente. No fim balbuciou: "Vou ver montras a semana toda. Com ele na cadeira, é difícil circular na aldeia onde moro e não perco tempo com tolices. Sendo assim, olhe, sempre gostei de ver montras, e é coisa que não faço há quase vinte anos". 

 

Assim estou eu.

 

Como essa mãe e a outra que após deixar a filha com a Liliana no campo de treino dos jovens e adultos e respondendo à mesma pergunta esclareceu, de forma entusiasmada, que o que mais ansiava para aquela semana só para ela, era "pôr uns fones nos ouvidos e correr, correr sem parar. Como a minha filha anda de cadeira, tenho sempre que estar atenta a sítios com acessibilidades e agora, sem ela, quero correr no meio da serra a ouvir música. Vou correr tanto que nem sei onde irei parar!". 

 

O luxo de ver montras e de correr.

 

Percebo-o agora a uma escala infinita, primeiro porque a Liliana esteve doente e está em franca recuperação, ao contrário dos filhos destas pessoas cujo estado de saúde ou mobilidade não contempla melhorias; segundo porque a Liliana esteve doente "apenas" sete meses, ao contrário, destas pessoas que são cuidadoras há décadas e de forma ininterrupta, finalmente porque, se isto foi tão desafiante e complicado como foi, não sei como seria se fosse com a minha filha. 

 

A todas estas mães a minha vénia e às mães da nossa  associação a certeza de que este ano, em ambos os campos de treino que estamos a organizar (e para o qual a associação se encontra a tentar encontrar financiamento para poder garantir o custeamento de todas as vagas e que ninguém fica de fora, portanto, se alguém que está a ler quiser apoiar é favor de me enviar email!)  todos estaremos ainda mais sensíveis ao impacto que isto tem em vós!

 

Corram, vejam montras, recarreguem as vossas energias!

 

Este ano,de forma pessoal, decidi que vou ter como foco cuidar dos cuidadores, porque o senti na pele e sinto que posso ter um papel importante a este nível. Em termos institucionais, em Outubro, organizaremos o primeiro retiro do grupo de ajuda e suporte mútuo que estamos a recuperar lá da Associação. Estamos entusiasmados.  

 

Há quem precise de correr ou ver montras.

 

Eu precisei de ver filmes e séries de enfiada, arrancar a Liliana de casa e começarmos a fazer caminhadas juntos, certificar-me que a Ana já está outra vez a fazer disparates (sinal de que se sente mais segura e que pode voltar ao registo habitual), começar a procurar outros desafios profissionais (estou num período de mudança e quero experimentar outras áreas) e em Agosto, embora não possa ir de férias para os meus Açores como planeado, vou acompanhar o campo de treino das crianças e dos adolescentes e depois foi para o dolce fare niente com as minhas loiras.

 

O blogue (tal como a vida) seguirá dentro de momentos. 

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