Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Em nome do Pai

Paternidade na ótica do utilizador.

Em nome do Pai

Paternidade na ótica do utilizador.

Post a quatro mãos: Nunca foi tão difícil ser pai como em Portugal no ano da graça de 2018

rui.jpg

 Enquanto estudava na universidade trabalhei num café para ajudar a pagar as contas. Nada de novo para mim, uma vez que a restauração sempre foi o negócio da minha família na nossa terra de origem. Mas tirar cafés em Portugal Continental tem toda uma mestria que eu jamais sonhara enquanto o fazia, em adolescente, para ajudar o meu pai, num pequeno café numa pequena ilha dos Açores. 

Café pingado, italiana, em chávena escaldada, sem principio, em chávena fria, com cheirinho, cheio, curto, sem fim, duplo, abatanado, café americano, carioca, escorrido, descafeinado, garoto, pingo, pingado, chino. Uma trabalheira! Nos Açores da minha adolescência um café era um café, sem mariquices nem grandes intelectualizações. 

Até ser pai acreditava que não havia nada mais complexo do que servir café a Continentais. Depois nasceu a Ana.

 

Se estamos num local público e ela faz uma birra descomunal e tentamos resolver o caso com paciência e serenidade somos olhados com reprovação com aquele ar de "olha os modernos, new age, não têm mão na miúda, onde é que já se viu isto, não educam os miúdos, vão com falinhas mansas e não tarda nada os miúdos viram-se aos pais, e é bem feita, no meu tempo era uma palmada e acabava-se a má educação num instante!". Se perdemos a cabeça e somos mais bruscos, agarramos na menina com mais firmeza, pomo-la de pé, damos palavras mais duras "já à minha frente! e a-ca-bou!" somos olhados com ar de horror, pais déspotas, quase que apostam que em casa espancamos a menina com um cinto, à antiga, tanto estudo e são uns pais presos nos dogmas do passado, coitadinha da criancinha, não se faz. 

Se vamos ao restaurante sem a criança e encontramos um casal conhecido (nessas alturas sempre com a prole inteira a tira-colo) lá vem o olhar de "ó pra estes, armados em solteiros sem filhos, grandes vidas, han, tivesse eu empregada e uma avó para usar e abusar também tinha uma rica vida" e depois os miúdos deles portam-se sempre bem, que anjinhos, e lá vem a maldita culpa a não deixar que a comida escorregue bem pelas goelas abaixo e a nossa lá em casa, coitadinha, parece que a rejeitamos, que não pertence à família. Se a levamos ao restaurante à volta enchem-se mesas de casais solteiros, grupos de amigos sem crianças num raio de 1 km e os nossos são os mais mal educados, e berram, e atiram comida num raio de 5 metros, e deixam cair tanto arroz que tememos que nasça uma plantação de arrozal aos pés da nossa mesa, e não se querem sentar, e querem ir ao quarto de banho uma vez, duas, três, infinitas, e entornam copos na mesa, e limpam mãos badalhocas nas nossas camisolas, e não se querem levantar. 

Se estamos em casa e a menina berra porque não a deixamos lavar o cabelo com óleo de amêndoas doces porque ficou vidrada no frasco que avistou no quarto de banho e continua a berrar durante uma hora, ininterruptamente, e nós ignoramos para não perdermos a cabeça levamos com o vizinho do andar de baixo, com ar de caso, a tocar-nos à campainha e a perguntar-nos se está tudo bem, a miúda a chorar há tanto tempo e a espreitar para dentro de nossa casa, e há brinquedos no chão, sapatos espalhados no corredor. parece que um tsunami passou lá em casa e encostamos a porta para esconder a desarrumação e o vizinho cada vez mais desconfiado, a pensar que estamos a esconder o corpo da miúda, de certezinha. "Coitadinha desta anjnha" que entretanto -que conveniente!- se calou, é vítima de maus tratos, de certezinha absoluta, e os vizinhos ali, sem arredar pé, com ar de quem vai fazer queixa à polícia, à segurança social, à CPCJ e ao Papa Francisco. Fechamos a porta e ali está ela, sossegada, a sorrir enquanto massaja o cabelo, entretanto seco, com o maldito óleo de amêndoas doces.

Se estamos em casa e está tudo sobre controlo e a miúda entretém-se a brincar sozinha, a ver a Doutora Brinquedos edição fim-de-semana non stop, a campainha toca, "está tudo bem?, é que não ouvimos a menina há meio-dia.lol. está tão caladinha. lol.", e nós a vermos eles a tirarem-nos nabos da púcara, a espreitarem-nos pela frecha da porta queentreabrimos para continuarmos a esconder a casa num pântano, e eles a acharem que temos o corpo da criaturinha enterrado por debaixo do soalho flutuante. 

Se está com tosse há uma semana e a levamos ao médico é porque somos hipocondríacos, que exagero, Deus, Alá, Nossa Senhora das Viroses ainda vos castiga. Se não a levamos somos uns relaxados, negligentes, e na volta "a menina" tem mesmo uma pneumonia e vocês aí descansadinhos, como se nada fosse. Pfff!

Às vezes, muitas vezes, tenho saudades de me desdobrar nas dificuldades em acertar no café pingado, italiana, em chávena escaldada, sem principio, em chávena fria, com cheirinho, cheio, curto, sem fim, duplo, abatanado, café americano, carioca, escorrido, descafeinado, garoto, pingo, pingado, chino.

Nunca foi tão difícil ser pai como em Portugal no ano da graça de 2016. Para todos os pais- que o sentem como nós- erguemos a nossa chávena. De expresso. Curto. Curtinho. Forte como se quer.  Uma bica, diz a minha mulher.

Para acordarmos para a vida!

 

 (Post a quatro mãos com a fantástica colaboração de senhora minha esposa)

9 comentários

Comentar post